Quando
nos deparamos com os mitos da criação do livro de Gênesis, deparamo-nos com
diversas tradições nas quais há intenso diálogo com o mito babilônico da
criação “Enuma Elish”. No entanto não
há mera apropriação, mas diálogo, e reinterpretação adaptada às crenças
basilares de Israel. Segundo a tradição sacerdotal, o mundo era massa informe
que existia como caos em meio às águas, de acordo com as mitologias do antigo
Oriente próximo (Mesopotâmia, Egito, Fenícia-cananéia, Suméria, Babilônia,
Tebas, Ugarit etc.). A exemplo do “Enuma
Elish”, a criação da luz precede as demais criações, e a própria árvore da
vida, que nas tradições orientais alimentava os deuses imortais,
também está presente no Éden. Alguns biblistas também remetem o “nós” de Gn
1.26 a outra influência dos mitos do antigo Oriente Próximo, segundo os quais o
deus supremo cria a humanidade em reunião com o conselho celeste. No Egito, havia
o deus oleiro que modela o homem de acordo com os seus próprios contornos e que
cria tudo o mais mediante o poder de sua palavra. E se nos mitos babilônicos,
Tiamat era a entidade que vivia nos mares e que representava as forças do caos,
sendo posteriormente vencido pelo deus Marduk, na tradição hebraica o espírito
(sopro) de Deus é aquele que paira SOBRE a superfície das águas (Gn 1.1-2),
estabelecendo organização e vida e vencendo, superando o caos de Tiamat. Dentro
da tradição javista também percebemos isso. Na língua suméria, “costela” e
“vida” são a mesma palavra. A deusa da vida é a Senhora da Costela. E na
conclusão do capítulo 3 o homem chama a mulher de “Eva”, forma da palavra
hebraica para “vida”, e reconhece que ela será a mãe de todo ser vivente
(3.20): referência de vida, não de subserviência. Ideia é fortalecida pelo fato de o próprio termo “auxilio” aplicado
à mulher ser o mesmo remetido a Deus em relação ao homem (Dt 33.7; Sl 33.20; 70.6
etc.). Ora, ninguém afirmaria que Deus é subserviente a quem quer que seja, mas
que é aquele que dá amparo, apoio, força. Semelhantemente, a mulher seria aquela na
qual o homem também encontra auxílio no sentido de amparo, apoio, força para
viver, e sem a qual não pode sobreviver.
Esses
estreitos diálogos dos escritores do livro de Gênesis com diferentes heranças
religiosas são contrários tanto aos mitos de pureza teológica que a maioria das igrejas
insistem em sustentar, quanto aos ideais de triunfalismo, distanciamento,
isolamento e contínua purificação. Os povos originários em relação aos hebreus e, consequentemente, em relação aos relatos da
criação são fontes nas quais os autores bíblicos bebem. Claro, como foi dito, não
há mera apropriação. Há sim ressignificações, adaptações e releituras, mas não
se lhes nega valor a priori, não se demoniza o conhecimento ou
a fé do Outro, a princípio. Isso nos faz lembrar alguns Pais da igreja.
Justino Mártir e Clemente de Alexandria, e seus conceitos de universalidade da revelação divina.
Por meio de seu “Logos Spermatikos”, Deus teria se revelado aos judeus pela Lei e pelos profetas, mas também aos gentios, pela
filosofia. É seguindo a lógica desses Pais e reconhecendo a sabedoria que se manifesta em cada um dos mais diversos povos que Karl Rahner cunha a expressão "cristianismo anônimo". Note-se
que o próprio Jesus reconhece em dois estrangeiros, provavelmente
pertencentes a tradições religiosas diferentes da sua, os maiores exemplos de
fé que testemunhou. E aí eu penso como nos distanciamos de um legado tão
importante de humildade e de reconhecimento de nossa pequenez diante da grandeza
de uma graça que, conforme Paulo disse, é multiforme.
A
exemplo da história da plural composição étnica, cultural e teológica hebraica,
na história de nossa formação identitária brasileira, consciente ou
inconscientemente, carregamos importantes heranças religiosas de origem
africana e indígena. Deparamo-nos com uma matriz religiosa africana da qual diversos
elementos também serviram como fonte aos escritores bíblicos. No Brasil, por
sua vez, dá-se a construção de uma religiosidade afro-brasileira cuja
incorporação da pomba-gira devolve à escrava sua sexualidade, dominada em
condições normais pelo senhor de engenho, possibilitando a essa escrava ir pra
cama ou pro mato com quem ELA queira, quantas vezes queira. Deparamo-nos com um Xangô,
orixá justiceiro, que inspirou vários quilombos de resistência à injustiça da escravidão,
aqui mesmo nos Palmares - Alagoas. Deparamo-nos com uma ritualística vivenciada em niveladoras rodas no seio das quais até canções sobre sofrimentos são entoadas com batuque, dança e alegria, sem dicotomizações
ou negação ao corpo, mas integrada à natureza humana e à mãe terra “Pachamama”, semelhantemente à tradição
javista do relato da criação, segundo a qual, da terra, o homem (agricultor) derivava
sua origem, existência, vida e regresso pós-morte. Era preciso cultivar e
cuidar da terra que lhe alimentava e abrigava, e da qual ele vinha e para a
qual voltaria.
Semelhantemente,
se pensarmos a religiosidade indígena, percebemos o quanto temos a aprender com
nossos irmãos de cor vermelha. Note-se como entre diversas culturas indígenas prevaleceu,
em determinados contextos, o paradigma da aldeia, no qual o papel social feminino era não
apenas reconhecido, mas privilegiado. Ali, o conhecimento não é cartesiano ou
fragmentado como no paradigma ocidental, mas integrado ao meio, à
sustentabilidade da vida como um todo. Ali persiste uma lógica de trabalho que
resiste ao acúmulo capitalista. Vale frisar que não se trata de ignorância, mas
de opção pensada. Lévi-Strauss e outros antropólogos descrevem alguns elaborados
mecanismos de resistência como a própria hostilidade àqueles caçadores que se
destacam dos demais trazendo mais alimento do que o necessário. Lógica pautada não
no acúmulo, estoque, consumismo ou na estratificação sob discurso meritório, mas no que é necessário à preservação de uma cultura igualitarista bem como à sobrevivência coletiva, à suficiência, permitindo assim aos indivíduos, a contemplação, o lazer, a convivência familiar, a espiritualidade,
a integração o próximo, com a natureza, os muitos banhos de rio. O princípio
sabático da criação, semelhantemente ao “bem-viver”
indígena, convida a sermos mais do que mera força de trabalho, números, concorrentes ou consumidores. Convida-nos a
sermos pais, mães, filhos, agricultores da terra e das relações. Convida-nos a
colher, mais do que o pão, o próprio dia. Sacraliza o descanso do corpo, da mente e da mãe terra que nos pariu a todos e que ora enferma,
precisa ser cuidada. Esses e outros aspectos do “bem-viver” não se tratam de uma busca individualista, mas de uma utopia
coletiva. Há uma preocupação com todas, com todos, e com o todo.
A
exemplo do que aconteceu com os povos originários dos hebreus - os hapiru, escravizados, marginalizados,
criminalizados e fugindo às consequências do crescimento das grandes cidades e
aos tributos demandados da segurança dos muros e das sentinelas, e cuja
organização social tribal e religiosidade espontânea de tradição oral e
integração com a natureza foi sendo substituída por uma religião centrada na
lógica do templo e de sacerdotes legitimadores do poder, a
religiosidade dos povos originários a partir dos quais foram formadas a sociedade e a fé brasileiras ainda vem sendo negada e
até demonizada por modelos que aqui chegaram pela expansão, lógica colonialista e domínio das
grandes nações.
No entanto, diante
do cenário de crise do modelo capitalista dentro do qual todos nós estamos mais
ou menos inseridos, se não precisamos assimilar todos os aspectos da
espiritualidade dos povos originários, negaremos tudo, inclusive sua sabedoria e prováveis
revelações de Deus a esses outros povos? Havemos de nos conformar com essa
promessa de desenvolvimento e progresso pautada no individualismo, no consumo,
na exclusão social, e no poder de poucos em detrimento da morte de tantos? Haveriam
paralelos entre o distanciamento dos judeus em relação à espiritualidade dos
seus povos originários e o nosso distanciamento em relação aos nossos? Existiriam
semelhanças entre os povos originários do povo hebreu e os nossos? Como poderíamos
beber dessas fontes de espiritualidade? Como a leitura da bíblia pode nos
ajudar nesse sentido? Particularmente, acredito que enquanto cristãos
ocidentais temos muito a ensinar, mas talvez ainda mais a aprender.
* Texto base usado como provocação aos debates em torno do tema das espiritualidades originárias em diálogo com os mitos da criação do livro de Gênesis, no segundo encontro CEBI-AL/2013, realizado em 16/03, e contando com a presença de Dilmacir, Vilma, Rubia, Gustavo e Jeyson.
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